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Meu Doppelganger Digital me Representa? — Estética, Identidade e Resistência no Colapso Digital

Atualizado: 25 de jul.

Artista digital e designer gráfico brasileiro reflete sobre sua relação com a inteligência artificial em imagem hiperrealista. Homem de pele clara, barba rala e cabelo curto escuro veste jaqueta bege e camiseta vermelha, sentado com expressão pensativa, com a mão direita apoiada sobre a perna. Elementos holográficos azuis flutuam ao redor, incluindo ícones de tecnologia, circuitos digitais e símbolo do Ethereum. A composição visual simboliza a intersecção entre criatividade humana, inovação, NFTs, cultura visual e IA generativa.

Um mergulho crítico e pessoal sobre o gosto como construção social, a performatividade digital e as contradições da subjetividade no século XXI.


Introdução


Meu doppelganger Digital me Representa? — Estética, Identidade e Resistência no Colapso Digital parte de uma inquietação que parece habitar o cotidiano contemporâneo: será que o que gostamos, postamos, consumimos e defendemos é realmente nosso? Ou estamos apenas reproduzindo expectativas, algoritmos e valores impostos?


O gosto não é mais apenas uma questão pessoal: é uma métrica. Um dado. Um recurso de marketing. Um modo de pertencimento. No entanto, o gosto também pode ser uma forma de resistência. O gosto — como veremos — é menos sobre livre escolha e mais sobre construção social. Ele é aprendido, condicionado, reiterado. E por isso mesmo, pode ser reaprendido, refeito, ressignificado.


Esta reflexão parte de uma série de inquietações — como artista, como designer e sujeito atravessado por múltiplas culturas, geografias e estéticas — para pensar sobre as fronteiras entre gosto e identidade, autenticidade e construção, consumo e crítica.


Ao longo do texto, articulo experiências pessoais e teorias críticas, reflexões sobre redes (mídias) sociais, algoritmos, cultura pop, subjetividade, capitalismo digital, "queeridade" e neurodivergência. O objetivo não é chegar a uma conclusão definitiva, mas tensionar o que se entende por gosto, subjetividade e expressão em tempos de colapso informacional.


As perguntas que impulsionam este ensaio não são meramente retóricas. Elas partem de vivências reais:


  • Como saber se gosto verdadeiramente de algo ou se apenas fui condicionado a gostar?

  • Seria necessário rejeitar o que gosto para reencontrar minha autenticidade?

  • Posso usar meu gosto — mesmo sendo socialmente construído — como ferramenta de transformação?


A essas questões se somam outras tantas provocadas pelo nosso tempo:


  • O digital "achata" a subjetividade?

  • A cultura woke ajuda ou atrapalha?

  • O aceleracionismo nos empurra para onde?

  • A democracia faliu?

  • Temos o direito ao esquecimento?

  • Vivemos cronicamente online?

  • Como tolerar uma cultura que nos esmaga sem nos rendermos a ela?


Não há respostas simples. Na verdade, há fricção entre teoria e sensibilidade, entre vivência e crítica, entre ruído e sentido, como caminho possível para reimaginar o gosto — não como mercadoria, mas como gesto ético e estético.


O Gosto como Construção Social


A noção de gosto como expressão individual e espontânea é relativamente recente. Como demonstrou Pierre Bourdieu em A Distinção (1979), o gosto é historicamente construído e socialmente condicionado. É marcado por classe, escolarização, origem e capital simbólico. Ele funciona como um marcador de distinção, uma ferramenta de legitimação cultural que separa o “refinado” do “popular”, o “culto” do “vulgar”


“O gosto classifica, e ao mesmo tempo é classificado.”

Bourdieu, P. (1979). A Distinção: crítica social do julgamento. Cap. 1 — O Julgamento do Gosto. Zahar. 2ª ed. p. 25–35.


No mundo contemporâneo, esse gosto socialmente construído é mediado por algoritmos. Plataformas digitais mapeiam nossas interações, convertem preferências em dados e os retroalimentam em bolhas personalizadas. Como afirma Byung-Chul Han em Psicopolítica (2015), o sujeito neoliberal acredita estar no controle, mas é capturado por uma liberdade algorítmica ilusória, onde cada clique confirma o que já se sabia.


"A liberdade se transforma em coerção quando assume a forma de desempenho, eficiência e otimização."

Han, B-C. (2015). Psicopolítica: neoliberalismo e as novas técnicas de poder. Vozes, 1ª ed. p. 25–31.


A Performatividade do Gosto nas Redes


As redes sociais transformaram o gosto em performance. Curtir, postar, comentar e compartilhar são atos públicos, que expõem preferências ao julgamento coletivo. O gosto se torna uma identidade curada — um doppelganger digital que representa não o “eu verdadeiro”, mas um “eu performado” para consumo alheio.


Esse duplo digital, embora construído por nós, passa a nos representar com mais força do que nossa própria experiência interna. Ele nos antecede nas buscas, nos algoritmos, nas indicações de conteúdo. Judith Butler já dizia, em Problemas de Gênero (1990), que a identidade é sempre performada. Nas redes, essa performatividade é maximizada.


There is no gender identity behind the expressions of gender.”

Butler, J. (1990). Problemas de Gênero: feminismo e subversão da identidade. Cap. 1 — Subjects of Sex/Gender/Desire. Civilização Brasileira. p. 181–189.


Além disso, como alerta Safiya Umoja Noble em Algorithms of Oppression (2018), os sistemas de recomendação não são neutros. Eles replicam e amplificam desigualdades raciais, de gênero e classe. A ideia de “gosto pessoal” se torna frágil diante de estruturas que moldam o que nos é mostrado desde o início


Search engines are not neutral technologies.”

Noble, S. U. (2018). Algorithms of Oppression. Cap. 1 – A Society, Searching. NYU Press. 1ª ed. p. 62–84.


A Infecção da Ironia e o Cínico Performativo


David Foster Wallace alertou que a ironia, tão valorizada nas culturas digitais, pode se tornar uma prisão. Em seu ensaio E Unibus Pluram (1993), ele denuncia o uso excessivo da ironia como forma de evitar o engajamento real, tornando tudo superficial, cínico e desprovido de afeto


Irony tyrannizes us.”

Wallace, D. F. (1993). E Unibus Pluram: Television and U.S. Fiction. Review of Contemporary Fiction. p. 151–173.


Memes, shitposts e discursos em looping irônico funcionam como anestesia. A zombaria constante impede o afeto, o vínculo e a construção simbólica profunda. Estar “contaminado pela ironia” — como me sinto atualmente — é perder a capacidade (ou ter uma imensa dificuldade) de dizer algo com verdade.


Esse esvaziamento se conecta ao que Nick Srnicek e Alex Williams denunciam em Inventing the Future (2015): a esquerda precisa abandonar a paralisia cínica e propor futuros desejáveis. O presente irônico nos sufoca com ruído, mas não nos oferece horizonte.


Left politics must embrace modernity and technological advancement.”

Srnicek, N., & Williams, A. (2015). Inventing the Future: Postcapitalism and a World Without Work. Cap. 2 — Why Are We Stuck? Verso. p. 118–131.


Nick Land, pensador da alt-right, defende o Iluminismo das Trevas: um aceleracionismo sombrio que aceita o colapso e propõe intensificá-lo. Um projeto tecnomonárquico que entrega tudo às máquinas e ao mercado.


Capital is an abstract alien intelligence.”

Land, N. (2017). Fanged Noumena: Collected Writings 1987–2007. Meltdown. Urbanomic. p. 443–456.


Em resposta, Franco Bifo Berardi propõe desacelerar, sentir, recuperar o corpo, o tempo, a sensibilidade. Em Depois do Futuro (2019), ele convida à melancolia ativa — um luto do possível perdido, mas que pode abrir caminhos para novos possíveis.


“O futuro acabou porque já não podemos mais imaginá-lo.”

Berardi, F. (2019). Depois do Futuro. Cap. 1 – A Morte do Futuro. Ubu Editora. p. 97–106.


Para Além do Algoritmo: Possibilidades de Futuro


O gosto como prática ética e estética


Ao compreendermos o gosto como um processo socialmente construído — e não como expressão espontânea e pura da individualidade — abrimos a possibilidade de repensá-lo como uma prática. Uma escolha que pode ser crítica, situada e orientada por valores que resistem à lógica dominante do consumo e do engajamento.


Reaprender a gostar se torna, assim, um ato político. Ao invés de reforçar padrões de visibilidade impostos, o gosto pode expressar singularidade, cuidado, dissenso e reencantamento. Ao invés de servir ao capital, pode servir à comunidade, à ancestralidade, à coletividade, ao simbólico.


Esquecer para lembrar


Na era da cronicidade digital, onde tudo é presente absoluto, cultivar o esquecimento pode ser uma ferramenta de saúde mental e epistemológica. Segura essa ideia: “Eu preciso esquecer que vou morrer para conseguir continuar a viver”.


Esquecer algumas estéticas. Esquecer certas fórmulas. Esquecer a ansiedade de relevância. Abrir espaço para que o novo se manifeste. Criar, como propõe Bifo, uma nova sensibilidade da lentidão — onde a experiência estética seja pausa, e não performance.


“O futuro acabou. Isto é, a ideia de futuro entrou em colapso. O século XX foi o século do futuro: o futuro era uma promessa, uma obsessão, uma espera. Agora essa ideia entrou em colapso. Não temos mais um futuro. Não temos mais uma ideia de futuro. A aceleração infinita da infosfera, do ritmo de produção, da mobilidade e do mercado destruiu o futuro, assim como destruiu o passado.”

Berardi, F. (2019). Depois do Futuro. Cap. 1 – O colapso do futuro. Ubu Editora. p. 14–15.


O direito à privacidade como um novo luxo


Na economia da atenção, privacidade virou privilégio. Quem pode não se expor? Quem tem o direito de não ser ranqueado, vigiado, analisado? Resistir ao doppelganger digital também é reivindicar zonas de invisibilidade, de silêncio e de opacidade. É recusar a exposição constante como norma da sociabilidade contemporânea.


O gosto como dissidência


No final, talvez a pergunta não seja “o que eu gosto?”, mas “o que o meu gosto permite construir no mundo?”. Gosto como estética da existência. Como modo de viver. Como campo de afeto. Como gesto político.


  • Se todo gosto é construção, que construções queremos habitar e oferecer?

  • Se toda estética é expressão de uma ética, que valores nossas escolhas estão defendendo?

  • Que narrativas visuais e simbólicas estamos dispostos a sustentar?


A resistência estética, nesse contexto, é menos sobre romper com tudo e mais sobre tensionar criativamente o já dado. É sobre cultivar contradições sem se paralisar nelas. É sobre ser incoerente e ainda assim estar implicado.


Entre o Doppelganger e o Eu: Um Ensaio Inacabado


Nada disso está resolvido. Este texto, como o gosto, é também um processo. Ele é feito de referências herdadas e de lampejos próprios. De desejo de ser autêntico e da consciência de que a autenticidade é uma narrativa sempre em disputa.


Nosso doppelganger digital continuará ali — postando, performando, representando. Mas talvez possamos, por instantes, retomar a autoria da narrativa. E não para apagar o duplo, mas para habitar melhor esse corpo híbrido que somos — entre o desejo e a repetição, entre o feed e o afeto, entre o algoritmo e o silêncio.


E que o gosto, afinal, seja menos um rótulo e mais um verbo. Uma forma de existir no mundo com intenção, com afeto e com ruído.

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